Para encerrar a série de “Contos da Euro” com convidados especiais, convidei André Rocha para compartilhar suas experiências e sentimentos com a Eurocopa.
Apaixonado por esquemas táticos desde jovem, o carioca André administra o blog Olho Tático no Globo Esporte. Além disso, ele já foi co-autor do livro que fez um contexto histórico da conquista continental e mundial do Flamengo em 1981.
Para colaborar com o Europa Football, André Rocha “volta” no tempo e faz uma análise tática da França de 1984, que conquistou a Eurocopa. Aquele time tinha simplesmente Michel Platini, que com nove gols em uma única edição do torneio, se tornou o maior artilheiro da história da Euro.
Confira abaixo o texto de André Rocha
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A Copa do Mundo de 1982 na Espanha é lembrança marcante para este que escreve, um menino de nove anos à época. Não só pela mobilização popular em torno da seleção canarinho nas ruas do Rio de Janeiro, mas principalmente por ser o primeiro Mundial, já com um mínimo discernimento, para entender o que acontecia nos gramados.
O futebol encantador do time comandado por Telê Santana no banco de reservas e Júnior, Falcão, Sócrates e Zico em campo até o revés para a campeã Itália, que fez o garoto ir às lágrimas pela primeira vez por causa das surpresas no planeta bola, é inesquecível.
Mas também ficou na memória outra equipe que chamava a atenção pelo estilo refinado, vocação ofensiva e um craque, legítimo camisa dez a liderar seus companheiros em uma campanha de recuperação na fase final do torneio.
A França de Michel Platini sofreu na estreia um duro golpe nos3 a1 impostos pela Inglaterra, rival histórico. Mas a goleada de4 a1 sobre o Kuwait comandado por Carlos Alberto Parreira – sempre lembrada pelo gol “anulado” pelo príncipe do país árabe, que invadiu o campo e “convenceu” o árbitro – e o empate com a Tchecoslováquia garantiram a segunda vaga na fase de grupos. Na segunda etapa, vitórias sobre Áustria (1 a0) e Irlanda (4 a1) e a classificação para a semifinal, que não vinha desde 1958, com a geração de Raymond Kopa, outro meia de enorme talento, e Just Fontaine.
No duelo épico com a Alemanha, empate em1 a1 com gol de pênalti de Platini, que segurou na mão de Battiston quando este deixou o campo de maca após entrada criminosa do goleiro Schumacher. Na prorrogação, os gols do meia Giresse e do zagueiro Tresor em seis minutos pareciam ter liquidado o time germânico. O cansaço, porém, chegou antes e os alemães foram atrás do empate e do triunfo na disputa de pênaltis (5 a4).
Derrota traumática que inviabilizou até a disputa pelo terceiro lugar – 3 a 2 para a Polônia -, mas que nutriu admiração e reconhecimento pela disputa leal e, principalmente, pelo time fantástico, de toque de bola envolvente e proposta de jogo moderna implementada pelo técnico Michel Hidalgo.
O esquema era o 4-4-2 ou 4-2-2-2. Com apenas um lateral, Amoros, o treinador utilizava três zagueiros de ofício e fazia marcação individual, com revezamento pela esquerda. Com isso, não era difícil ver Amoros na esquerda marcando o ponta adversário que trocou de lado, ou Trésor, que seria o lateral-esquerdo, cobrindo o lado direito na zaga. A única complicação dessa prática era a indefinição de quem faria a sobra. Mas não deixava de ser uma alternativa interessante. Assim como o quadrado no meio-campo. Genghini e Tigana protegiam a zaga, mas também qualificavam a saída da defesa com bom toque de bola. Na articulação, Giresse procurava mais os lados, especialmente o direito. Por todo o campo, Platini, não só chegando à frente para concluir, mas também recuando, fugindo da marcação, trabalhando com os volantes e aparecendo como elemento surpresa. Na frente, Rocheteau mais centralizado e Six, que voltava pela esquerda e, na prática, muitas vezes o time se configurava em um 4-2-3-1 – até nisso era semelhante ao Brasil, que tinha Éder pela esquerda se juntando aos meio-campistas.

No 4-2-2-2, que muitas vezes se transformava em 4-2-3-1, três zagueiros se revezavam na marcação sobre o ataque adversário e Amoros tinha liberdade para apoiar. O quadrado talentoso no meio-campo comandado por Platini se aproximava de Six pela esquerda e Rocheteau centralizado
A base e o treinador foram mantidos dois anos depois para a busca do título inédito da Eurocopa jogandoem casa. Naestreia, vitória por1 a0 sobre a Dinamarca de Sepp Piontek, a primeira a atuar, de fato, no 3-5-2. Na formação inicial, algumas mudanças: Bats na meta herdando a vaga do fragílimo Ettori, Yvon Le Roux na zaga, Luis Fernandéz no lugar de Genghini à frente da defesa e uma nova dupla de ataque: Lacombe (Bordeaux) e Bellone (Monaco).
O gol? Michel Platini, a 12 minutos do fim com a bola desviando em um defensor.
Depois do triunfo sofrido, a previsão era de mais problemas contra a Bélgica de Pfaff e Scifo, que fez boa campanha no Mundial da Espanha e seria semifinalista quatro anos depois no México. Mas Platini novamente desequilibrou com um “hat-trick”. Giresse e Fernandéz, improvisado na lateral-direita, completaram os inapeláveis5 a0, que colocaram definitivamente a França entre os favoritos à conquista continental. Bossis voltou à zaga com a entrada de Jean-François Domergue pela esquerda. Genghini e Six retornaram à formação titular.
Nos3 a2 sobre a Iugoslávia que garantiram a liderança do Grupo 1, mais três gols de Platini, compensando a pouca eficiência do ataque, que teve reeditada a dupla titular de dois anos antes: Rocheteau atuou no comando de ataque. A outra mudança em relação ao jogo anterior foi a entrada do meia Ferreri pela esquerda. Curiosamente, Platini jogou mais recuado. Mesmo assim, o craque iluminado apareceu de trás para chegar aos sete gols na Euro. A dupla “trinca” até hoje é um feito inédito em fases finais.
Na semifinal, nova saga de 120 minutos. Desta vez, contra Portugal. Mas com final feliz. Depois do empate por 1 a1 no tempo normal, assim como diante da Alemanha no Mundial, a história virou a favor da França. O time luso saiu na frente e os Bleus se recuperaram com Domergue, que também marcara no primeiro tempo, e Platini, a um minuto do final do tempo extra. Delírio do público no Estádio Velódrome, em Marseille.
Para a decisão no Parc de Princes contra a Espanha, Hidalgo praticamente repetiu a formação da semifinal: Battiston, Le Roux e Bossis mais fixos na defesa, Domergue solto para apoiar pela esquerda. Enquanto Fernandéz novamente se juntou a Tigana, Giresse e Platini. Na frente, Bellone entrou no lugar de Six e formou dupla com Lacombe.

Na Euro, Domergue foi o lateral apoiador pela esquerda, Fernandéz formou dupla com Tigana à frente da defesa e Bellone formou o ataque com Lacombe
Jogo duro no primeiro tempo, mas Platini contou com a falha do goleiro Arconada para desafogar a França no início da segunda etapa. O gol de Bellone no minuto final foi a senha para a festa no estádio e no país pela primeira conquista oficial em um esporte coletivo. Também o auge de um ano perfeito: 100% de aproveitamento nos 12 jogos de 1984 e ainda a conquista da medalha de ouro na Olimpíada de Los Angeles – vitória sobre o Brasil por2 a0.
Foi também uma temporada fantástica para Michel Platini, a melhor de sua vitoriosa carreira: com a Juventus, campeão italiano – artilheiro com 20 gols -, da Recopa Europeia e iniciando a trajetória para a conquista da Liga dos Campeões do ano seguinte. Não por acaso, os prêmios individuais foram muitos: além do óbvio título de craque e artilheiro da Eurocopa, foi eleito melhor do mundo para Ballon d’Or, Onze d’Or, Guerín e World Soccer.
Para o menino, já com 11 anos, Michel Platini se transformou em um herói. O primeiro além das fronteiras do Brasil, tão repleto de talentos. O grande personagem e destaque absoluto da primeira Euro que o autor destas linhas acompanhou com atenção e já vai para a oitava edição, ainda acompanhando com olhos atentos e apaixonados pelo esporte bretão.