Entre capitães, aniversariantes e salvadores

Colônia, 23 de junho de 2006

Dava para dizer que era quase Natal para os franceses. Naquele dia, Zinedine Zidane, o grande astro do único título mundial que comemoraram na vida, completava 34 anos de idade.

Só que aquele Natal não teria a presença do Papai Noel – o Zizou. O temperamento, que sempre foi um ponto frágil de sua carreira, pesou e no jogo contra Togo, pela última rodada da fase de grupos da Copa do Mundo, estaria fora por acúmulo de cartões.

À primeira vista, o desfalque não seria tão sentido. Era um grupo teoricamente fácil e o último jogo tinha tudo para ser protocolar.

Pena que o time francês não se ajudou. Com dois pontos, a França estava encurralada. Suíços e sul-coreanos, que completavam a chave, se enfrentavam no mesmo horário e ambos somavam quatro pontos. Um mísero empate colocaria os franceses contra as cordas, precisando não só vencer como fazer saldo para não acumularem mais um vexame e cair na primeira fase – como foi em 2002.

Nada como chegar aos 34 anos sem poder ajudar em campo. E pior: se aposentar oficialmente, como já era sabido na época.

Só que Zizou não era o único a assoprar velinhas naquela tarde, não.

Jogador tão emblemático quanto e também campeão mundial em 1998 – só que sendo reserva – Patrick Vieira completava 30 anos na ocasião. Mais maduro do que no título do fim dos anos 90, ele despontava como um dos líderes do elenco. Campeão de quase tudo pelo Arsenal e jogador respeitado pelo desempenho na Juventus naquela temporada, ele era um dos mais maduros do elenco. Até por isso herdou a tarja de capitão na ausência de Zidane.

Mais do que bola, aquela noite exigia imposição, força e uma vitória na marra. Não havia outra opção!

O supersticioso Raymond Domenech sabia disso. Por isso, atendeu ao clamor popular e colocou Trezeguet e Henry lado a lado. Era a dupla que imprensa e torcida queriam ver. O primeiro havia sido vice artilheiro do Campeonato Italiano pela Juventus, enquanto o segundo conduziu o Arsenal ao vice europeu e vivia o auge da forma física e técnica. Dos dois, só Henry vinha sendo titular.

A escolha era clara: pressionar desde o princípio. Trezeguet teve ao menos três chances claras na primeira etapa. Quando não era o goleiro Kossi Agassa trabalhando, era o bandeirinha, que anulara um gol. Até mesmo Franck Ribéry, uma espécie de patinho feio daquele time (e bota feio nisso), teve oportunidades claras de abrir o marcador.

O primeiro tempo só não foi mais assustador porque Phillippe Senderos, companheiro de Henry no Arsenal, deu uma mãozinha ao colega de clube e colocou a Suíça em vantagem contra a Coreia do Sul.

A conta ficou mais fácil: bastava um gol sobre os togoleses para a classificação se concretizar. E seria o aniversariante da tarde que resolveria aquele cálculo.

Com Zidane, Vieira foi o capitão francês | Foto: AFP

Patrick Vieira não era de fazer muitos gols. Até aquele dia, tinha quatro pela seleção e havia marcado sete em quase 60 jogos na primeira temporada em solo italiano. Mas seria ele o responsável pela vitória naquela tarde.

Aos 10 minutos da etapa final, o meio-campista daria uma das raras arrancadas para a grande área naquele jogo. Quando Ribéry recebeu a bola na intermediária, Vieira voou como um foguete. O arranque do volante, somado ao primeiro drible de Ribery quebraram a defesa togolesa.

Quando ingressou na área, o ponteiro, até então no Marseille, viu os franceses em superioridade na grande área. Eram três de azul contra dois de amarelo na frente da pequena área. A inteligência de Vieira proporcionou isso, já que fatalmente Ribéry ficaria sem opção de passe.

Com a marcação bagunçada, o aniversariante da noite, longe de ser um Zidane, foi tão decisivo quanto. Quando recebeu a bola, precisou de apenas um domínio de costas para girar e finalizar de pé direito. O tiro alto não foi alcançado por Kossi Agassa, que precisou buscar a bola no fundo das redes.

Menos de dez minutos depois, Vieira repetiria o expediente. Em um lance pouco notado, Willy Sagnol controlava a bola na direita, perto da risca central. O meio-campista, dono de rara inteligência, enxergou o espaço livre e, assim como no primeiro gol, arrancou com passadas largas. Sagnol lançou, Vieira, já na risca da grande área, escorou para Henry, que precisou de dois toques para completar em gol.

Ninguém mais tiraria aquela vaga dos franceses.

Depois de tanto sofrimento, de angústia e incerteza pela ausência do grande ídolo, Vieira assumiu a bronca e colocou a França nos trilhos de uma campanha que só pararia no vice-campeonato. Ele voltaria a ser brilhante novamente contra a Espanha, nas oitavas-de-final, onde marcou seu último gol pela seleção francesa após mais de dez anos de serviços prestados.

Vieira foi craque, jogava do terno, diriam muitos. Era capaz de unir a força bruta com a sutileza de passes milimétricos, somados a inteligência acima da média. Quando a França mais precisava dele, exatamente na noite em que completou 30 anos, mostrou isso tudo com a maturidade, a elegância e o espírito de liderança técnica que o fizeram entrar para o hall dos grandes do futebol francês.

E se o herói fosse Guivarc’h?

Paris, 12 de julho de 1998

Ele não tinha nenhum gol até aquele dia na Copa do Mundo.

A final daquela noite era a última chance de marcar em casa e, de quebra, cair nos braços do país como herói nacional e campeão mundial.

Os olhos de todos os amantes do futebol estavam todos voltados para o Stade de France, e ele, com a pressão sob os ombros, poderia conquistar a primeira Copa do Mundo do país.

As histórias paralelas de Zinedine Zidane e Stephane Guivarc’h param por aí. Foi Zizou, na época defendendo a Juventus, quem decidiria aquele jogo contra o Brasil com duas cabeçadas inapeláveis contra a meta de Taffarel e atrasaria os planos brasileiros de conquistar o pentacampeonato mundial.

Mas… E se fosse Guivarc’h o personagem dessa história?

Assim como Zidane, o centroavante do Auxerre chegou a decisão sem ter balançado as redes. Assim como Zizou, também era contestado. O juventino por render abaixo do esperado, enquanto o centroavante por não marcar, tendo David Trezeguet e Thierry Henry como sombras.

Quase 20 anos depois, parece absurdo imaginar que Guivarc’h tenha colocado os dois no banco, mas fazia sentido na época. O centroavante de porte físico avantajado, estilo trombador, havia sido o goleador máximo do Campeonato Francês por duas temporadas consecutivas. De quebra, foi o artilheiro da Copa da UEFA com sete gols – um a mais do que Ronaldo, na Internazionale, e personagem principal do lado oposto naquela final.

A sombra, porém, ficou maior na goleada por 4 a 0 sobre a Arábia Saudita, ainda na fase de grupos. Henry fez dois e Trezeguet anotou um. Dali em diante os discretos números da dupla em território doméstico pouco importavam na comparação com o goleador da França, que tinha apenas um tento com a camisa dos Bleus – o único em toda sua carreira internacional.

Aimé Jacquet, o técnico, ia na contramão. Defendia Guivarc’h e sabia que ele poderia lhe dar o mundo.

E quase deu!

Os primeiros 45 minutos no Stade de France foram de pesadelo para os brasileiros, que já vinham atordoados pela convulsão de Ronaldo e a incerteza do que viria naquela noite. Guivarc’h, aproveitando-se disso, deu muito trabalho para Junior Baiano e Aldair, que não conseguiam conter os constantes deslocamentos da direita para o centro do atacante.

Só que em uma das coincidências que talvez só o mundo do futebol seja capaz de criar, Guivarc’h talvez nunca tenha tido tantas chances para marcar um gol como naquela final.

O primeiro ataque foi dele. A bicicleta, após ganhar dividida contra Baiano, foi pelo lado de fora. Minutos depois, no primeiro lapso de genialidade de Zidane, ele recebeu na frente de Taffarel, errou o domínio, se desequilibrou e finalizou para fora.

A grande chance, porém, foi quando o placar estava 1 a 0. Lilian Thuram (aliás, todos lembram de Zidane, mas Thuram fez uma final primorosa) lançou do campo de defesa. A zaga brasileira vacilou. Baiano e Aldair erraram feio o tempo de bola e Guivarc’h se viu diante da maior chance de gol da carreira.

Era ele, a bola, Taffarel e uma França inteira pronta para lhe abraçar.

Acostumado a penalizar os goleiros adversários com chutes de direita, viu a bola se oferecendo para o outro pé. O chute de canhota não foi o ideal. Não muito forte, não muito fraco. Talvez vencesse um goleiro desatento, mas não Taffarel. Calejado pelo título de 1994 e de uma tensa semifinal contra a Holanda, onde foi protagonista, ele estava ligado e fez a defesa.

Poético ou não, aquela finalização, com o pé ruim dele, foi o ponto de flexão da carreira de Guivarc’h. Se aquela bola entra, com certeza, hoje estaríamos falando de um reconhecido herói francês, de um atacante predestinado, que apareceu na hora que precisava para decidir.

O lance foi tão marcante que poucos recordam que na etapa final ele teve uma chance tão clara quanto – ou até mais. Na ocasião, um recuo errado de Cafu o deixou de frente com Taffarel, desta vez, no pé bom. Guivarc’h engrossou, chutou de canela e não deu trabalho ao goleiro brasileiro. Esse gol perdido raramente é lembrado.

Mais títulos mundiais do que gols em Copas para Guivarc’h | Foto: Reprodução

O chute longe do ideal na primeira etapa serviu para colocá-lo no limbo dos campeões do mundo. Do gol que o colocaria no radar dos grandes clubes europeus para o vazio das críticas e da tabela de tentos marcados por ele no Mundial. Há quem diga que a França foi campeã sem atacante.

Maldade.

Guivarc’h esteve longe de ser o melhor jogador francês naquela Copa, mas tinha papel importante no time de Jacquet. Era ele quem dava profundidade ao time, prendia os zagueiros e se entendia com Youri Djorkaeff, abrindo espaços para as infiltrações de Zidane.

Nos livros de história, porém, o que ficará marcado é que ele não marcou nenhum gol, que foi personagem discreto daquele time. Os mesmos livros de história, entretanto, mostrarão que o único francês a conquistar a Copa do Mundo com a camisa 9 foi Stephane Guivarc’h.

Muitos tentaram e naufragaram. Só ele teve esta honraria.

O dia em que o mundo conheceu Joël Bats

Aproveitando a chegada da Copa do Mundo da Rússia, o Europa Football inicia hoje a série especial “Copeiros”, contando histórias de personagens que ajudaram a escrever a trajetória da França nos Mundiais. Dentro do possível, tentarei trazer posts semanais aqui no blog. Quem abre a série será o goleiro Joël Bats:

Guadalajara, 21 de junho de 1986.

Sob um sol escaldante, capaz de aquecer até o mais frio dos homens, um nome passaria a ecoar na cabeça de milhões de pessoas e ingressaria para a eternidade. Era a hora de Joël Bats entrar para a história de heróis (ou vilões) das Copas do Mundo.

Poucos sabiam quem era aquele goleiro de cabelos cacheados e rebeldes, de quase 30 anos e que acabara de ser campeão francês com o PSG. Parecia importar pouco, ou quase nada, o fato de vestir a camisa 1 da França desde 1983, um ano depois de ter vencido um câncer no testículo. Foi exatamente a doença que lhe deu forças para pensar na vida, entrar no ramo da poesia e virar até compositor de músicas.

Também parecia acrescentar pouco a sua história ter sido titular no título europeu de 1984, mesmo tendo abandonado a concentração na véspera da final com Philippe Bergeroo e Bruno Bellone para pescar.

Havia uma razão para Bats ser renegado desta maneira. Num time tão talentoso, com Yannick Stopyra, Dominic Rocheteau, Luis Fernandez, Jean-Pierre Papin, Alain Giresse, Jean Tigana e, claro, Michel Platini, por que alguém se importaria com o goleiro?

Bom, havendo consideração ou não pela figura de Joël Bats, ele vinha fazendo bem seu trabalho e afastando qualquer desconfiança quanto a quem era realmente o goleiro francês. Entre 1983 e a terceira rodada da fase de grupos da Eurocopa de 1984, por exemplo, somou sete jogos consecutivos sem ser vazado. Até aquele dia 21 de junho, acumulou 13 partidas sem sofrer gols, tendo emendado duas séries de cinco jogos seguidos.

No México, Joël Bats vinha tendo uma Copa do Mundo tranquila. Em nenhum jogo foi muito exigido e fora vencido apenas uma vez, num tiro de rara felicidade do soviético Vasyl Rats, no empate por 1 a 1 na segunda rodada da fase de grupos. Canadá, Hungria e até a campeã mundial Itália (eliminada pelos franceses) não conseguiram vencer o goleiro do Paris Saint-Germain.

Uma certa seleção amarela estaria pela frente nas quartas-de-final do Mundial. E que árdua missão teria o Brasil de Telê Santana! Mais do que o campeão europeu, a equipe canarinho, tentando se livrar da frustração de 1982 na Espanha, teria pela frente uma parede chamada Joël Bats.

Mas missão dada é missão cumprida. Pelo menos foi assim durante boa parte da primeira etapa. Com Michel Platini discreto em campo, coube aos brasileiros tomarem as rédeas da partida.

Bats, que foi mero espectador nos outros jogos franceses, encontrou um Careca inspirado. O atacante do São Paulo criou ao menos três chances antes de derrota-lo aos 17 minutos. Após uma troca de passes caprichada entre Müller, Josimar e o próprio Careca, veio o gol que mostrava a França que não teriam vida fácil. Minutos depois, Müller ainda acertou uma bola na trave.

Os franceses sentiram o baque e não conseguiam pressionar. Ao menos cantavam uma jogada: os ataques pela direita, ora com Amoros, ora com Rocheteau, mostravam o caminho a ser seguido. E foi de um cruzamento de Rocheteau que o grande Michel Platini, aos 41, concluiu em gol após vacilo brasileiro.

Um alívio e tanto para Bats, que foi para o intervalo com a sensação de que poderia estar perdendo o jogo.

Platini evitou a derrota na etapa inicial | Foto: Reprodução

Zico coloca Bats na história

A etapa final ganhou novos contornos. Sem tanta perna, mas querendo evitar mais 30 minutos de prorrogação, as duas seleções buscavam o gol. Bats passou a ser exigido, fez defesas importantes e viu novamente Careca incomodar ao acertar uma cabeçada no travessão.

Enquanto o jogo rolava, a torcida brasileira gritava insistentemente o nome de Zico. Longe da melhor forma física, o Galinho de Quintino ficou no banco ao longo da competição. Não foi diferente no Jalisco. Aos 26 minutos, porém, Telê atendeu ao clamor do público e colocou o camisa 10 em campo, na vaga de um sumido Müller.

Zico precisou de um toque na bola para justificar os pedidos da torcida. Ao receber próximo à risca central, observou a passagem de Branco e o deixou livre na grande área. Em uma saída desesperada, e até desnecessária, Bats cometeu pênalti e a vantagem brasileira recaia sob os pés do camisa 10 brasileiro.

Era Bats contra Zico. O goleiro francês pouco badalado, mas muito eficiente, frente o craque do Brasil, ídolo do clube de maior torcida do país e grande esperança para a conquista do tetra.

Bats sequer esboçou uma reação. Parou em cima da linha, colocou as mãos sobre os joelhos e passou a olhar fixamente para a bola. Sem firulas. Sem palminhas. Sem pulinhos sobre a linha. Sem apontar o canto. Só o olhar fixo e compenetrado de quem sabia que poderia entrar para a história naquele momento.

O tiro forte, a meia-altura e quase no centro de Zico parou em Bats. Uma defesa mágica, longe de ser uma das mais difíceis ou plásticas, mas suficiente para colocar aquele goleiro de cachos saltitantes, de nome curto e fácil pronúncia, entra os grandes carrascos do futebol brasileiro.

Bats evitou o gol de Zico | Foto: Divulgação

Bats viria ainda a fazer um milagre em uma cabeçada à queima roupa do próprio Zico, na pequena área, e catar um pênalti de Sócrates, já na disputa por penais, mas foi aquela defesa no tempo normal, no emblemático chute do 10 brasileiro, que colocaria o nome do francês em todos os jornais no dia seguinte.

O goleiro dos Bleus até falharia na semifinal contra a Alemanha Ocidental, numa cobrança de falta forte, mas em cima do próprio corpo, executada por Andreas Brehme, só que a história já estava escrita, mesmo com o terceiro lugar na Copa. Telê, que anos depois faria história pelo São Paulo, viu o sonho mundial pela seleção naufragar. Zico, ídolo nacional, não conseguiu dar o passo além que tanto sonhou.

No mínimo irônico que o grande herói francês naquela tarde fosse exatamente o goleiro. Em meio a Platini, Rocheteau, Fernandez, Giresse, Tigana e outros tantos que formaram uma das mais talentosas gerações que a França já viu, foi Bats quem escreveu seu nome entre os grandes dos mundiais naquele junho de 1986.

>> Assista ao jogo completo na Footballia;