Seis horas da manhã. Era esse o horário que o despertador tocava, marcando o momento em que se iniciava um novo dia para Oliver. Bom, talvez não tão “novo” assim. Ele tinha uma rotina: levantava, tomava um banho, preparava um reforçado café, vestia sua camisa social e sua calça jeans e pegava o metrô para ir ao trabalho, de onde retornava apenas no fim da tarde.
Não era e nunca seria a rotina de seus sonhos, mas não gostava de reclamar. Seu emprego era em uma escola do outro lado da cidade. Oliver era uma espécie de assessor de imprensa ou secretário, nem ele sabia descrever exatamente seu cargo, mas recebia um bom salário, suficiente para um homem solteiro sobreviver.
Nessa rotina um tanto quanto monótona encontrava-se uma de suas maiores paixões: o Bayern. Oliver não perdia nenhum jogo de seu time de coração. Se não havia jeito de ir ao estádio, sentava no sofá e assistia pela TV. Se nem isso era possível, procurava um bar, um vizinho, um amigo, um parente ou até mesmo aquelas lojas de vendas que deixam os televisores a mostra na vitrine para saber quanto estava o jogo do Bayern.
Apesar da paixão pelo time bávaro, Oliver nunca foi um fanático. Ele condena as ações hostis contra adversários, até mesmo xingamentos, prefere criticar o jogador expulso e não o árbitro que o botou pra rua, é contra as contratações milionárias e os salários astronômicos, mas apoia a modernização dos estádios e acha que a Uefa está certa em colocar cadeiras nos locais reservados aos torcedores que preferem ficar em pé.
Oliver viu o Bayern ser campeão alemão diversas vezes, sempre comemorou os títulos e nunca pestanejou em comemorar os triunfos com seus amigos em festas banhadas de cerveja. Mas nunca ter visto seu time ganhar a Liga dos Campeões não era uma mera decepção, e sim uma enorme ferida ainda não cicatrizada.
Apesar dos 23 anos de idade, Oliver não comemorou o título europeu de 2001. Ele tinha 11 anos na época e aguardava ansiosamente pela partida. Uma das lembranças mais fortes é de seu pai falando insistentemente após a semifinal contra o Real Madrid que não trabalharia no dia da final, mesmo correndo o risco de ser demitido.
Por ironia do destino, seu pai, que deveria estar ocupado na hora da partida, conseguiu uma folga para acompanhar Bayern x Valencia, enquanto Oliver, que deveria ser a pessoa livre da ocasião, não pôde assistir ao jogo.
No mesmo dia da decisão havia uma viagem da escola para o “interior do interior do interior” da Alemanha, um local tão isolado que ninguém sabia como estava no mapa do país. Se estivesse na forma geométrica dividida para as nações asiáticas ou americanas no Mapa Mundi, Oliver entenderia tal distância, mas era Alemanha e custava a acreditar.
O fato era que a cidade estava tão distante do que alguns consideram como “civilização” que não havia nenhum telefone na cidade, muito menos internet ou televisão. Poderiam encontrar alguns rádios durante o caminho, mas a sintonia não era das melhores e as estações se preocupavam mais em tocar músicas tradicionais ou anunciar o preço do arroz.
Os moradores, então, nem se interessavam por esportes. Para eles era perda de tempo, coisa inútil. Mais valia uma plantação bem feita, animais bem tratados e o aconchego familiar do que um jogo bobo.
Como a viagem duraria três dias, Oliver só saberia do resultado no sábado.
– Maldito dia que vim ao mundo – pensava o garoto.
Não havia o que fazer.
O Bayern ganhou, o pai de Oliver festejou, Munique estava em êxtase e ele só soube do motivo quando a população estava de ressaca. O garoto lembra-se de poucas coisas daquela época, era muito jovem, mas guarda com angústia aqueles momentos de distância do time. A partida foi reprisada diversas vezes naquela semana, mas ele optou pelo afastamento da televisão. Não queria ver aquilo, só lhe traria lembranças ruins, recordações do dia que não festejou a glória máxima de seu time.
Em 2010 veio o momento da libertação. Mais maduro, formado no ensino médio, trabalhando e independente, Oliver ia sozinho aos jogos do Bayern e não titubeava em ir aos bares próximos beber após as massacrantes vitórias. Já era um homem, já era um torcedor bávaro.
Cogitou a possibilidade de viajar a Madrid para assistir a decisão contra a Internazionale, mas algo lhe dizia que não seria uma boa ideia. Durante alguns dias, Oliver passou por uma espécie de “inferno astral”, quase sofrendo acidentes, se machucando, recebendo broncas que não recebia normalmente. Em sua ingênua cabeça, aquilo estava acontecendo porque pensou em ir para Espanha assistir ao jogo, logo desistiu da ideia.
No dia da final, reuniu os amigos em sua casa, preparou a cerveja e armou todo ambiente para que se sentissem dentro da decisão. Mas o inferno astral não havia ido embora. O Bayern perdeu, a cerveja esfriou e o clima ficou quente. Houve bate-boca entre os amigos e alguns deles não se falam até hoje.
Sua paciência com o Bayern e a sina de não vencer a Liga dos Campeões da Europa estava acabando. 2012 era o ano limite. A final seria em Munique, os bávaros foram às compras e trouxeram Manuel Neuer para ser o tão aguardado substituto de Kahn, ídolo de Oliver na infância.
Neuer era um dos poucos que não lhe inspiravam confiança, mas não era pelo motivo que trazia os mesmos suspiros em outros torcedores – ser cria do Schalke 04 – mas sim por ele ser o primeiro grande goleiro do Bayern desde Oliver Kahn. Oliver era fã de seu xará e não aceitava qualquer um na meta de seu time. Se fosse para vestir a camisa 1, que fosse para honrá-la e mostrar ao mundo toda raça bávara e Neuer seria cobrado até demonstrar tais características.
Essa birra de Oliver só caiu na semifinal, novamente contra o Real Madrid. Ele havia assistido todos os jogos em casa, mas se engajou em viajar para Espanha acompanhar aquela partida e não se arrependeu… Ou melhor, se arrependeu. Naquele mesmo dia, pediu perdão por todas as críticas, cornetadas, xingamentos e tudo mais que havia feito a Neuer nos últimos meses.
Ver aquele alemão embaixo dos três postes agindo como um leão perante um adversário espanhol em uma disputa de pênaltis lhe trouxe a imagem nunca vista de Kahn contra o Valencia em 2001. No instante que Neuer agia, Oliver voltou a se sentir como um garoto de 11 anos, imaginando que via em campo Élber, Effenberg, Scholl e, principalmente, Kahn. Foi com aquele time que teve sua iniciação em campos de futebol e guarda lembranças sentimentais destes jogadores até hoje.
Nada o faria perder a decisão da Allianz Arena, nem mesmo um novo “inferno astral”. Os ingressos já estavam comprados, os compromissos desmarcados e o teste cardíaco… Bom, o teste seria durante o jogo, dentro do estádio.
Oliver fazia parte daquele mar vermelho, ele sentia que aquilo poderia pesar contra o Chelsea. O adversário, aliás, era um time que não lhe inspirava nenhuma simpatia. Lembra-se daquele assunto que nosso personagem “não gosta de transferências milionárias”? Pois é, esse é o motivo que fazia com que Oliver alimentasse certo ódio pelo time azul.
A bola havia rolado e o coração batia de forma nunca antes notada. Era um momento único e nosso protagonista não aceitava sair do estádio sem o título.
O placar zerado ao fim dos tensos 45 minutos iniciais deixavam Oliver cada vez mais nervoso. Seu tradicional lanche de intervalo ficou de lado. Preferiu ir ao banheiro e jogar uma água no rosto, ele suava como nunca.
Seu nervosismo era tanto que, na volta para seu lugar no estádio, passou por amigos e colegas de trabalho e não os viu. Dias depois foi cobrado por não dizer nada, cumprimentar ou fazer um simples sinal, mas não havia o que falar. Enquanto seguia o percurso, a única coisa que enxergava era sua cadeira. Não era concentração, era tensão.
Durante o segundo tempo, Oliver não tinha certeza se passaria no teste cardíaco. Perdeu a conta de quantas vezes ficou sentado em lances de perigo e em pé em bolas controladas da defesa. Perdeu a noção de tudo, não conseguiu distinguir o que era certo ou errado e xingava até passe certo de seu time.
Quando começou a se conformar com mais trinta minutos de sufoco, veio o gol de Thomas Müller. Oliver não se conteve. A característica “frieza alemã” deu espaço a euforia, a loucura e aos gritos e pulos de alívio.
Oliver não sabia e tudo aquilo era verdade ou se o coração já estava parado e o que acontecia era obra da fantasia criada em sua mente. Ele sabia que a mente poderia pregar peças, mas o trapaceiro da vez não foi seu cérebro e sim Didier Drogba.
O marfinense foi durante toda semana a maior preocupação bávara. As esperanças de título do Chelsea passavam por ele e o Bayern sabia disso. Oliver nunca foi daqueles que levantavam a ideia de “quebrem o craque adversário”, mas na partida, sua mente estava tão agitada que gritava “quebra, quebra” nos poucos toques na bola de Drogba.
Ninguém do time o ouviu. Talvez se ouvissem, quebrassem o jogador ou nem dessem bola. Se dessem, sairiam no lucro. O golpe de cabeça do marfinense no gol de empate londrino foi de mesma intensidade que um tiro no peito. Direto, reto, veloz e fatal.
Oliver desabou, não sabia o que fazer. Ele tinha consciência de que teria a prorrogação pela frente, mas não acreditava que aquele gol havia acontecido.
O tempo extra tinha um sentimento diferente para nosso personagem. Ele não estava nervoso como antes, parecia mais um ser em estado vegetativo, se é que podemos descrever assim. Seu corpo estava lá, sua visão acompanhava cada lance, mas a alma estava perdida. Nem mesmo quando Robben perdeu o pênalti ele esboçou uma reação mais clamorosa. Lamentou, como todos no estádio fizeram, mas, feito um robô, voltou seus olhos ao jogo.
Era chegada a hora da disputa por pênaltis. Havia um misto de emoções na Allianz Arena. Uns choravam, outros gritavam, uma parte do estádio mostrava confiança, outra parte sentia medo. Alguns poucos ficavam de costas para o gramado só para não ver o que se passaria.
Oliver mantinha seu status robótico. Ele estava de pé, com os braços cruzados e com os olhos fixos em Manuel Neuer. Em algum lugar de seu peito queria que o antigo arqueiro do Schalke voltasse a invocar Kahn e deixasse a ‘orelhuda’ em Munique. A fixação era tão grande e assustadora que Oliver nem notou as cobranças desperdiçadas por Ivica Olić e Bastian Schweinsteiger. Só se deu conta de que voltaria a viver uma decepção quando viu Drogba convertendo a cobrança que rendeu o título ao Chelsea.
Esse dia ficou marcado como um divisor de águas para Oliver. Enquanto 90% dos torcedores bávaros deixavam a Allianz Arena de forma cabisbaixa, o rapaz permanecia em sua cadeira e tentando entender o que havia se passado. Aquele momento foi o pior de sua vida, nunca havia presenciado algo tão chocante, isso que trabalhava em uma escola lotada de crianças que adoram correr de forma aloprada e que invariavelmente surgiam com cortes profundos em suas frágeis pernas.
Daquele dia em diante, Oliver queria fazer sua própria felicidade e decidiu não se envolver tanto com o futebol. Ele percebeu que não era muito saudável andar cabisbaixo por causa de uma derrota em um jogo e que era burrice demais entregar o estilo de seu comportamento a 11 jogadores que vestem uma camisa vermelha.
Coincidência ou não, sem Oliver torcendo ferrenhamente, o Bayern vive uma de suas mais gloriosas temporadas da história. Em nenhum momento pensou em ir a Allianz Arena acompanhar seu time. Além disso, passou a se contentar em saber apenas o resultado da última partida, às vezes, nem isso era preciso para que seu dia transcorresse normalmente.
O único jogo que ousou bisbilhotar pela televisão foi contra o Arsenal. Viu o começo e desligou após o gol londrino, percebeu que não era uma boa ideia continuar em frente à telinha. Efeito do “choque Chelsea”.
O tempo foi passando e o terremoto bávaro seguia em Munique. Oliver tentava se manter distante do Bayern, mas o Bayern queria ficar próximo de Oliver. Não havia escapatória, apesar da relutante fuga.
Hoje faltam dois jogos para o término da temporada, duas decisões, diga-se de passagem. Oliver acreditava que poderia permanecer alheio a tudo, mas ele não esperava que um episódio acontecesse.
Faltando uma semana para o embate com o Borussia Dortmund pela Liga dos Campeões, o chefe de Oliver o chamou em sua sala para receber um convite. Nosso protagonista já imaginava se tratar de uma promoção ou um aumento de salário, mas não era nada disso.
O filho do chefe trabalha em uma das empresas que patrocinava a Liga dos Campeões. Empresa essa que distribuiu algumas dezenas de ingressos para funcionários e o chefe de Oliver também recebeu alguns. Inesperadamente, vários empregados da escola receberam ingressos e passagens pagas para a decisão como forma de agradecimento do chefe pelos vários anos de dedicação.
Oliver foi um dos contemplados e nem sabia o que dizer. Não queria fazer a desfeita de rejeitar um presente daqueles, assim como não queria quebrar sua sina de deixar o Bayern de lado naquele ano. Aceitou o convite, mas não decidiu se vai ou não para Londres. Esse é o dilema.
E vocês? O que fariam na situação de Oliver?